Humana

Editora / Félix

Título: Félix
Autor: Ricardo Machado
Editora: Humana
Ano: 2021 (29 de abril de 2021)
Idioma: português/espanhol
Projeto gráfico e editoração: Aline Assumpção
Revisão: Joseana Stringini (português); Ana Lilia Félix Pichardo (espanhol)
Coordenação editorial: Fernando Boppré
Páginas: 406
Dimensões: 24 x 17 x 3cm
Peso: 720g
ISBN-10: 978-65-99-22-33-1-0

Preço de capa: R$ 79,90 (para adquirir o livro, clique aqui)


Descrição

Existem histórias que quase ficam de fora da História. É o caso de Félix Peyrallo Carbajal (1913 – 2005). Poeta, andarilho, filósofo, professor, construtor de relógios de sol, vanguardista, amigo de artistas e pensadores, conferencista, boêmio… Félix se ocupou em andar e promover encontros ao longo de seus quase cem anos de vida, deixando esparsos vestígios de sua história, agora reunidos pelo historiador e professor Ricardo Machado.

“Quem foi Félix Peyrallo Carbajal? Se para a maioria das biografias essa é uma pergunta relativamente simples, no caso de Félix, as respostas são sempre provisórias, deslocando-se ao compasso de uma vida que se fez em movimento. Félix se entregou à procura por viver a vida como obra de arte. Essa entrega fez com que muito cedo saísse de casa em uma viagem radical sem retorno, atravessando desertos, enfrentando abismos, promovendo encontros poéticos e encantando pessoas em diferentes lugares do mundo”, escreve o autor.

Félix levou uma existência nômade em pleno século XX por um território que inclui o Uruguai como local de nascimento e o Brasil como sepulcro. Entre um e outro, Espanha, França, Cuba, Argentina, Paraguai, México. Em sua passagem por estes lugares, realizava conferências sobre temas diversos como poesia, filosofia e matemática. Além disso, em diversas cidades deixou construído um relógio de sol, muitos deles aqui no Brasil.

Durante suas andanças, Félix se encontrou com figuras importantes da cena artística e intelectual latino-americana, como Eduardo Galeano, Carilda Oliver Labra, Pedro Garfias, Rubén Darío e Manuel Bandeira que, por sinal, deixou registrado em uma crônica suas impressões sobre o encontro:

“Ao perguntar quando chegou ao Rio de Janeiro, ele responde que foi no dia anterior; quanto tempo pretendia demorar na cidade, respondeu que não sabia; do que vivia na ocasião, respondeu que vivia de mendicância. E assim o estranho visitante de Bandeira diz ter sido por toda parte por onde esteve: quando tem fome pede comida, quando tem sono pede uma cama e, se não descobrir um lugar para pouso, passa a noite inteira caminhando, pois é capaz de caminhar 25 quilômetros sem sentir fadiga. Comer e dormir não são problemas, os problemas da vida são outros.” (Ricardo Machado)


Sobre o autor

Ricardo Machado é doutor pelo programa de pós-graduação em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente do curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul – campus Chapecó. Autor do livro Entre o público e o privado (Edifurb, 2008), Organizador dos livros Desterritorializações no vale, com André Voigt (Liquidificador, 2012), Cultura escrita no Sul do Brasil: estudos de história intelectual e das correspondências, com Fernando Vojniak (Argos, 2021). (Foto: Leonardo Santos)


Saiba o que já foi dito sobre o livro:

Curta-metragem: 
Assista ao curta de Joel Zanette, com Ricardo Machado falando sobre Félix Peyrallo Carbajal.

Live de lançamento: 
Assista aqui o lançamento, com Ricardo Machado, Maria Bernardete Ramos Flores, Ana Lília Félix Pichardo, Paulo Acácio Soares e mediação de Fernando Boppré.

Entrevista com o autor:
Publicada no canal do Youtube da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campos Chapecó, 09/04/2021.


Matérias sobre o livro:
Publicada por Evandro de Assis no NSC-Total, 11/04/2021.

Publicada por Felipe Santos no Jornal do Comércio, 15/04/2021.

Publicada por Fernando Boppré na Revista Fora do Eixo, em 28/05/2021.

Publicada por Carlos María Domínguez no Jornal El País, do Uruguai, em 30/01/2022.

Publicada por Caio Ricardo Bona Moreira, em seu blog Baú de Fragmentos, em 19/04/2022.


Texto sobre o livro
Félix, um Atlas de Poesia, por Maria Bernardete Ramos Flores*

Começo por uma imagem, das tantas que há no Félix. “Quando abri o envelope, estavam lá seis pedaços de fotografias, uma flor seca e dois pedaços de guardanapo. Todos os elementos estavam grudados pela ação do tempo. Jaziam aí há 60 anos. Dispus os pedaços sobre a mesa na esperança de encontrar os encaixes das peças. Pura ilusão. Elas não formavam nenhuma unidade. Como não haveria ordem possível, tomei a liberdade de deixar as peças como as dispus, e sob esta ordem, feita de uma forma um tanto automática, composta em cima da mesa cinza naquela manhã na cidade de Matanzas, em Cuba, na casa da poeta Carilda Oliver Labra, fotografei com minha máquina os seis fragmentos de fotografias. Com aquele gesto me tornei parte dessa história.”

Neste gesto inaugural, Ricardo Machado anuncia o meio, sim o meio, pois ele declara que, nestes destroços, não vê o começo e nem o fim, só o meio, para procurar os rastros de um peregrino, intelectual/poeta, sem obra. Encontrar o braço, e mais ainda a posição do braço de Laocoonte, que lhe faltava quando encontrado em ruínas nos escombros, produziu o dilema entre a comunidade artística que tratou do caso Laocoonte. Mas não é este caso que inspira Ricardo. Afinal Laocoonte foi reintegrado com a descoberta da posição correta de seu braço perdido. O que Ricardo viu, na pilha de cartas de Félix enviadas para a poeta, foi uma imagem ruinosa, sem possibilidades de sutura. Lembrou-se, então, de outro corpo ruinado, o Torso de Apolo, até hoje sem cabeça e sem membros, mas brilha no poema de Rilke, pois aquela pedra arde como um candelabro e possui a luz do olhar que ainda salta.

As imagens ruinosas das cartas guardadas na velha casa de Carilda, com cheiro de urina dos inúmeros gatos que habitam o mesmo espaço, brilham na sua matéria, física e espiritual. Foi com elas que Ricardo levantou Félix, o trágico mendigo, que não tinha “casa, sem coisas herdadas, sem cães”, passagem de um poema de Rilke, porque esses bens não cabiam entre as tralhas que carregava, uma quantidade enorme de poesia, não de livros de poesia; só de poesia.

Para mim, a imagem que me seguiu ao longo da leitura de Félix foi a imagem de Atlas, o deus grego que sustentava o céu sobre os ombros, aquela figura apropriada por Warbug para dar nome ao seu Atlas Mnemosine, um Atlas que carrega a memória da história da humanidade, colada em imagens, também peregrinas. Vejo no Félix, não no homem que se chamou Félix, mas no Félix livro, um Atlas de poesia, poesia carregada não apenas pelo Félix homem, aquela personagem andarilha que batia de porta em porta dos poetas, mundo afora, mas poesia carregada por uma espécie de duplo, no gesto escriturístico do autor de Félix livro.

No movimento de Ricardo Machado, também peregrino e solitário, a vida ruinosa de Félix Peyrallo Carbajal, realizou no Félix livro uma deambulação feita de linhas ziguezagueadas, sem mapa, sem bússola; dois percursos paralelos, não exatamente uma linha ao lado da outra, cujo intervalo entre elas se mediriam pela métrica; mas uma sobre a outra, cujos intervalos dão-se na sinestesia da experiência histórica que coloca face a face sujeito e objeto, fazendo desaparecer o desvão entre os dois, ao ponto de não se reconhecer mais quem é um, quem é o outro. A empatia, a força messiânica se quisermos citar Walter Benjamin, sustenta as duas linhas presas pelo magnetismo da arte e da poesia, do sonho libertário das vanguardas artísticas. “Produzi cada linha deste livro como quem caminha lado a lado com incerteza, me permitindo retornos e excessos.” – disse o autor. De fato, não consegui saber se Ricardo serviu de cavalo para falar das do nomadismo estético e intelectual de Félix ou se este foi o cavalo de Ricardo para o exercício do nomadismo como método narrativo.

As linhas desenhadas sobre um Globo Terrestre, também em pedaços, pedaços de mapas, traçam visualmente o nomadismo dos dois andantes: uma delas, pontua os lugares estacionados por Félix Peyrallo Carbaral; a outra, as viagens de Ricardo Machado aos lugares pisados antes pelo poeta, para respirar o ar poético que fora respirado por ele. O hipotético Atlas da Poesia, poesia sustentada nos ombros destes dois viajantes, como Titã grego que sustenta o céu, também aparece visualmente na foto de Ricardo com uma mochila às costas, à porta da poeta cubana Carilda Oliver Labra, cujo arquivo de cartas de Félix transformou-se na Esfinge de Ricardo. Só que aqui, eram muitos enigmas. Serviram para provocar encontros e não para solucionar respostas. E foram os encontros, primeiro entre o autor e a sua personagem, cujo enredo acabou por misturar os papéis, e os dois se tornaram coadjuvantes numa odisseia de encontros amorosos com a vida e a obra de diferentes poetas: Carilda, Pedro Garfias, Rubén Darío, Eduardo Galeano, Rainer Maria Rilke, Rimbaud, Cervantes, Manoel Bandeira e tantos outros que cintilam nas páginas de Félix.

Assim disse o autor:

Félix Peyrallo fez do nomadismo seu agenciamento, buscando promover encontros através da literatura e do pensamento, percorrendo textos, autores e lugares. Por isso, optei em narrar a história de sua existência através desses encontros poéticos, carregados de incertezas e simulacros de histórias.

Com alguns dos poetas, o encontro produziu para Félix uma estância maior na cidade. Carilda, José Martí, em Cuba, Rubén Darío na Nicarágua, Pedro Garfias no México. Ricardo fez do encontro uma estância maior na obra de cada um dos poetas, escrevendo páginas primorosas sobre literatura latino-americana.

Mas o nomadismo aqui não se revela apenas no incessante movimento de corpos a deslocar-se pelo espaço. O nomadismo de Félix homem e do autor de Félix livro revela a relação de ambos com uma escrita nômade, na experimentação da linguagem e no exercício do pensamento. Nos diversos platôs, nas diversas camadas, que sustentam este hipotético Atlas de Poesia, encontramos a afinidade de destino com os poetas malditos Rimbaud, Baudelaire, Nerval e Lautréamont, a experimentação artística dos surrealistas, Breton e Aragon, referências para a própria existência encontradas na vida de Rúben Darío e Pedro Garfias. No pensamento intempestivo de Nietzsche, encontrou-se o sentido da vida vivida como arte. Em Benjamin, a iluminação para pensar a arte do despertar para a política.

Lutar pela completude de Félix homem talvez fosse a pior forma de traí-lo, declara o autor. Lutar pela definição disciplinar desse livro, que tem origem numa tese de doutorado de história, é trair Ricardo que levou adiante o nomadismo, os encontros e os acasos como método escriturístico. Se a obra for catalogada como livro de história, ganhará muito a historiografia ao contemplar um trabalho que primou pelo método do fragmento e da montagem, que entendeu a lição de Walter Benjamin. A história é objeto de uma construção cujo objeto não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Li Félix como quem lê um livro de boa literatura. Ou um ensaio de cultura literária, especialmente da América Latina. Ou um livro de reflexão sobre a filosofia intempestiva nietzschiana, na peregrinagem do poeta, que escolheu viver sob o signo das vanguardas dos anos de 1920 e 1930, fazendo da linguagem uma experiência limite, que lhe permitiu uma singular forma de viver a vida como obra de arte.

Escolha melancólica, nos diz o autor, pois a longa vida de Félix o fez viver as mudanças do lugar do artista e do intelectual ao longo de século XX. Aquela personagem independente, do poeta boêmio, afeito às experimentações estéticas, criador de revistas e manifestos, acaba pouco a pouco na segunda metade do século. Depois da década de 1980, Félix se tornou conhecido como construtor de quadrantes solares. Se negou o tempo da modernidade, paradoxalmente, termina seus dias fazendo cálculos matemáticos para capturar as horas do dia, embora ainda aí resida a sua resistência, pois seus gnomons guardam ainda a organicidade do tempo, avessos ao tempo dos relógios mecânicos.

As últimas páginas de Félix têm a marca da melancolia de quem foi ao mundo inexorável dos mortos, da geração libertária que nos antecedeu. Os encontros poéticos e amorosos, hoje, são lembranças guardadas na memória. Mas mesmo como memória tendem a desaparecer, diz o autor. Todos os restos serão dissipados na tempestade do tempo. Até os quadrantes solares feitos de cimento serão derrubados. “Esse trabalho é mais do que o olhar para estes destroços que subsistem na busca pela eternidade” – finaliza o autor. Esse trabalho é a tentativa de novos acontecimentos, completa; o que nos remete a Walter Benjamin diante do quadro A Melancolia de Albrecht Dürer. No ativismo crítico do filósofo, na sua profunda desconfiança diante do tempo histórico, no seu inconformismo diante da catástrofe que se abatera sobre a Europa com o nazismo, na década de 1930, perguntou-se sobre a possibilidade de despertar os sonhos de outrora e de assumir a emergente tarefa política de mudar o curso das coisas; tarefa que se impõe hoje para a nossa geração.

* Maria Bernardete Ramos Flores é professora titular aposentada de Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de diversos artigos, destacando-se as obras “Tecnologia e Estética do Racismo. Ciência e Arte na Política da Beleza (2007), pela Argos Editora, e “Xul Solar e Ismael Nery entre outros Místicos Modernos. Sobre o revival espiritual”, 2017, pela Mercado de Letras. 



Resenha:
Félix, por Ana Lilia Félix Pichardo*

Félix foi um daqueles homens feitos de fragmentos de histórias, que só puderam existir no século XX. Para sua sorte e infortúnio, Félix nasceu no sul do continente americano, mas sua pátria foi a poesia e se dedicou a fazer de sua vida uma viagem sem retornos. Peyrallo foi filho do modernismo de Rubén Darío e fez de sua vida uma espécie de poética da viagem e do tempo, razão de não ser simples acompanhar os seus caminhos pelos lugares onde deram suas conferências ou onde construiu seus relógios de sol. Ligado aos exilados espanhóis no México e esteticamente próximo dos artistas da geração de 1927, Félix chegou a Cuba pré-revolucionária buscando poesia e encontrou com Carilda Oliver Labra. Provavelmente esse vínculo com a poeta seja uma das fontes mais precisas de que Félix passou por Matanzas, deixando pegadas de sua existência.

O livro de Ricardo Machado pode ser lido como uma cartografia, um caderno de viagem ou como um quebra-cabeças. Não somente representa um valioso documento que recorre a vestígios da vida de Félix em suas andanças pela América Latina, como também produz um desenho na forma de um mapa-texto. A pesquisa do autor representa a perfeita analogia do que foi peregrinarem nômade e poética de Peyrallo, sua relação com a literatura e com o campo literário em diversos países, assim como sua vida boêmia sem porto seguro. O resultado é um livro que se vive como uma viagem, cujo mapa são os vestígios que Ricardo encontra do caminho de Félix, para nos aproximarmos do enigma de sua existência, ainda que a resposta esteja na mão do leitor ou da leitora.

Quem foi Félix Peyrallo Carbajal?

Provavelmente não há uma resposta única.  O que temos diante de nossos olhos e mãos é um quebra-cabeça aberto a qualquer possibilidade que o leitor ou leitora decida. Este livro se abre como um palimpsesto, talvez porque a vida de Félix foi uma série de camadas narrativas empilhadas uma sobre as outras; porém produz o deleite da leitora cavar até onde fique satisfeita sua curiosidade por saber quem foi Félix e como essa vida fragmentada pode ser um espelho de nossos dias.

* Ana Lilia Félix Pichardo, México. Licenciada em Letras, mestra em Ciência Política, com interesse em Literatura latino-americana, política e literatura, literatura escrita por mulheres e movimentos sociais. Sobretudo, se considera leitora e aprendiz da arte literária.